O ESPECTRO DE SANSÃO


"Quais seriam os laços mágicos e misteriosos que unem uma pessoa ao seu animalzinho de estimação?
Poderia esse sentimento de afeição perdurar para sempre, mesmo no além?"


O Relato mostra como isso pode acontecer!

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Existem fatos e acontecimentos que marcam a vida de uma pessoa, e somente tempos depois você relacionará a causa ao efeito.

Aconteceram comigo tais fatos, os quais se impuseram à minha vida de tal forma, que eu soube imediatamente a causa, e hoje meu fardo é enorme, com o peso das lembranças que carrego,  vindas de uma fase ao mesmo tempo alegre e insana de minha existência.
Éramos recém casados e felizes. Minha esposa Ana vinha de uma família  distante, e raras vezes víamos seus parentes.
Tendo somente a mim, Ana, com sua beleza exótica,  partilhava comigo um certo pendor pela solidão.
Adorava animais, particularmente cães.
Para ser sincero confesso que  sofria muito com o pensamento de despender parte da minha energia com um ente irracional, mas era plenamente solidário à sua devoção, e invariavelmente terminava por me afeiçoar aos bichos.

 Houve um dos animais que era especialmente objeto dos afetos de minha esposa.
Era de porte pequeno, com pedigree, olhar esbugalhado, muito inteligente (o quanto pode ser um cão), ao qual foi dado o nome de Sansão.
Onde Ana estivesse, Sansão também estaria, silencioso, dependente, carente, mas principalmente obediente, e talvez esse fosse o motivo do carinho com o qual ela  o tratava. Durante o dia, na minha ausência, e à noite, nas horas em que sozinha, ela costurava no andar térreo do sobrado, Sansão era sua preciosa companhia. Esclareço agora um ponto importante. Ana sempre tivera visões.
Sim, por algum viés psicológico, que eu nunca cheguei a entender perfeitamente (apesar de às vezes ter estremecido de pavor!) ela possuía esse poder.
Quantas vezes eu quase adormecido, despertava apavorado com os gritos vindos da sala de costura, e ao correr desesperado pelo longo corredor para socorrê-la, surpreendia-me com a calma com que ela descrevia o que havia visto.
Eram vultos de branco que se dissipavam inesperadamente, homens inescrutáveis vestidos com ternos escuros, que em segundos viravam as costas e desapareciam, crianças pálidas que em grupo atravessavam correndo o espaço abaixo da escadaria em direção a lugar nenhum, coisas terríveis assim, que felizmente diminuíam a medida que nosso amor aumentava.

Ana tinha poucas amigas, adorava ficar em casa, e eu, ocupado com os negócios doze horas por dia, agradecia o fato de ter em casa um cão que diminuía a solidão de minha amada.
À noite, quando eu chegava a casa, no afã de sentir no corpo e na alma todo o calor de um lar feliz, encontrava Sansão me esperando na entrada, e ambos corríamos para Ana.
Eu a amava muito, e bastávamo-nos a nós mesmos, mas a vida não perdoa eternamente tal exclusivismo, e então tudo mudou. Havia na vizinhança uma residência antiga, cujos proprietários mudaram-se, e o novo dono a demolira.
O terreno era grande, e o entulho acumulado logo se tornou abrigo e nascedouro de ratos. Ratos que se tornaram por algum  milagre da genética, em pouco tempo enormes ratazanas, que  realizavam constantes visitas à nossa casa.
A solução sugerida por Ana para terminar tal indesejável turismo, foi aniquilar os  invasores com veneno. Um veneno tão perigoso que era adquirido quase na clandestinidade.
E assim, enquanto aguardávamos que alguém providenciasse a limpeza do terreno, os ratos foram sendo mortos.

Passaram-se poucas semanas e como sempre as causas começaram a gerar os efeitos. Assim, em uma tarde morna de Domingo, enquanto eu estava no andar de cima, entretido com meus documentos, um grito lancinante ecoou pela casa, e ao descer, apavorado, deparei com Sansão já estendido no solo da varanda, estremecendo em convulsões, e Ana ao seu lado, chorando desesperadamente. Mais tarde, olhando para Ana como se a estivesse vendo pela primeira vez, escutei sua voz entrecortada relatar o que ocorrera.
Ao preparar o terrível veneno ela esquecera a isca já pronta no chão do nessa hora já escuro quintal, e Sansão simplesmente a ingerira. Acredito piamente que um destino cósmico une todas as forças vivas do Universo, e quando um ser que consideramos inferior, mas que é muito querido, abandona esse mundo, é um fragmento precioso de nossa alma que devolvemos ao infinito.
Assim, enterramos Sansão no dia seguinte em um local especial do quintal de nossa casa, e Ana demorou a se conformar, até remover de seu cérebro o fantasma insone do remorso.
A vida continuou, pensamos em ter novamente um cão da mesma raça, mas nunca chegamos a realizar esse desejo. Novamente vivíamos felizes, Ana não mais falava das suas aparições, que eu acreditava já fazendo parte de um passado sombrio, mas após aproximadamente um ano novamente nosso imperecível karma se manifestou, inesperado e terrível.

A saúde de minha esposa, com sua compleição frágil, sempre me preocupara, suas imprevisíveis tonturas nunca puderam ser totalmente decifradas, até que o diagnóstico terrífico nos atingiu como um raio. Ana estava com câncer. Passaram-se então semanas, e nas idas e vindas a centros médicos e laboratórios, após finalmente constatar-mos a gravidade da situação, decidimos que Ana não se internaria, que permaneceria em casa, na casa que ela tanto adorava, junto a suas coisas, e no meu imenso egoísmo, junto a mim.
Mas o Amor total e apaixonado entre dois seres humanos é tão magnífico, que sempre que ocorresse deveria ser assinalado e imortalizado, tal era o meu doloroso e inconformado pensamento.
Ana continuou no nosso quarto, agora em um leito só dela, e a doença parecia progredir rapidamente.
Aos poucos fui percebendo que suas visões haviam retornado, e muitas vezes, do escritório ouvia sua voz, em alguma espécie de diálogo, aonde o interlocutor não era absolutamente audível.
Confesso que houve uma noite em especial que ouvi, em um arrepio de horror, vindo do quarto, um breve ganido de um cão, logo encoberto pela voz de Ana, em um tom claramente recriminatório. Nunca mais ouvi tal coisa, e logo esqueci o fato.
Foi então contratada uma acompanhante, Clara, uma jovem simpática e prestativa, olhos negros e perscrutadores, e então uma empatia imediata, tanto quanto possível em tal situação, surgiu entre ela e Ana.
Clara realmente amava Ana como se fosse sua irmã mais velha, senão sua mãe, e estava logo totalmente seduzida pelo carisma inegável de minha esposa, agora quase delirante. Se poderia dizer que um estranho vínculo de submissão e indulgência nasceu e crescia célere entre as duas mulheres.

Então, dos castelos sombrios da velha Inglaterra, dos penhascos inabitáveis que circundavam certa mansão na Romênia, do fundo escuro de um tenebroso e visitado lago na Escócia, de nenhum lugar medonho e tenebroso que pudesse algum dia existir, não poderia vir a neblina espessa e inefável que em uma noite chuvosa de Sexta feira se abateu sobre nosso outrora feliz Lar.
Naquela ocasião eu estava no escritório, quando já noite adentro ouvi um contínuo e indecifrável ruído no quintal, o qual eu podia vislumbrar por inteiro pela janela, apesar da espessa escuridão dominante.
Após algumas inúteis tentativas de localizar a fonte do ruído, e como esse após algum tempo tivesse finalmente cessado, voltei a meu trabalho, mas não demorou muito para a tempestade que para sempre deixou seus escombros na minha mente, desabasse sobre nossa casa.
Os passos nervosos e inconfundíveis de Clara fizeram-se ouvir no vão da escada e eu previsivelmente aguardei sua silhueta surgir à porta, porém um sobressalto subliminar percorreu minha mente, ao ouvir o arfar descontrolado de sua respiração que se aproximava.
Hoje e sempre, quando conto essa história, numa catarse interminável, ainda estremeço quando relembro a visão terrível que ante mim se apresentou naquele horrível momento.
O olhar esgazeado, o corpo rígido, as mãos trêmulas acenando para mim, a boca espumante balbuciando coisas interditas, ali estava Clara, ou o que antes era Clara, o mesmo corpo, porém mergulhada em uma dimensão fantástica, expondo um pavor infinito em cada átomo seu. Pus-me de pé imediatamente, tomado por um medo irresistível, desconhecido, osmótico, e assim que ela viu que eu estava pronto, deu meia volta e cambaleante desceu as escadas, sem que não antes se virasse para verificar se estava sendo seguida.

A sala estava escura, o longo corredor exibia à frente do nosso quarto uma réstia luminosa que atravessava a porta que guardava o leito de Ana. Clara estancou aí, olhando para mim e para o quarto, com a mesma aparência fantasmagórica.
Sua adorada senhora de alguma maneira obscura conseguira finalmente seus serviços fúnebres.
Corri para o quarto empurrando a serviçal para o lado, e o que vi naquela sinistra noite, naquele ambiente agora impregnado por um odor sepulcral, através das brumas misteriosas dos segredos inconfessáveis da morte, o que vi naquele instante até hoje está gravado nas profundezas das minhas células, e nas raízes agora encanecidas de todos os meus pêlos.
Ana estava morta. Seu aspecto era inconfundível, eu que a conheci em todas as fases de sua curta vida adulta. Seus olhos abertos e estáticos exibiam uma ternura desconhecida para mim, e o macabro objeto de sua atenção jazia a seu lado, estendido nos fartos e alvos lençóis.

De alguma maneira Clara soubera que seria a última noite de Ana, e de alguma maneira conseguira realizar seu último desejo.
O esqueleto de um pequeno animal, ainda coberto de farrapos de carne corrompida se aninhava sob um dos braços estendidos de minha amada Ana. Entendi de repente a origem do espantoso som que tanto me intrigara.
Era Clara escavando a  terra úmida do quintal, na escuridão da noite e na garoa fria, buscando frenética o troféu que demonstraria à sua ama sua total submissão, sua total admiração, diretamente da cova para a dona , o corpo querido, arruinado e putrefato de Sansão.


Roberto Nesil - São Paulo - SP - Brasil
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